Após realizar dois longas-metragens adaptados de livros dele próprio, o franco-afegão Atiq Rahimi encarou o desafio de levar para o cinema a história autobiográfica da escritora ruandesa, de etnia tutsi, Scholastique Mukasonga. Notre-Dame du Nil, o livro, foi lançado em 2012 e ganhou o Prix Renaudot, uma das mais importantes premiações literárias da França. Nossa Senhora do Nilo, o filme, venceu o Urso de Cristal no Festival de Berlim.
Com exceção do veterano Pascal Greggory, ator francês que atuou em grandes filmes como A Rainha Margot e Piaf - Um Hino Ao Amor, todo o elenco de Nossa Senhora do Nilo é formado basicamente por atrizes e atores de primeira viagem. E é justamente por esse detalhe que a história transmite ao espectador uma veracidade ainda maior.
Com ação no ano de 1973, entre as montanhas da bacia do Congo e do Nilo, em Ruanda, e tendo como cenário principal as dependências do colégio interno que dá nome ao longa, toda a história gira em torno de um grupo de garotas donas de lindos nomes como Virginia, Gloriosa, Immaculée, Veronica, Modesta, Frida, Goretti... Nesse colégio, comandado por uma administração belga, temos em sua maioria meninas da elite de Ruanda que recebem ali a melhor educação e também os ensinamentos da religião católica. Em certo momento, fica clara a existência de um sistema de cotas: 10% para etnia tutsi, já extrapolada, representada principalmente por Virginia, nossa protagonista, e Veronica, sua amiga.
Todas as meninas são tratadas de igual forma, utilizam o mesmo uniforme, o mesmo pijama, dormem no mesmo aposento e realizam as mesmas tarefas, sempre divididas em grupos sorteados. Parece até intencional do diretor Atiq Rahimi, em uma das primeiras cenas, na qual as personagens são apresentadas, o corte rápido entre uma e outra, tornando difícil o entendimento de quem é quem.
É através de um agente externo, o vizinho belga Fontenaille (Pascal Greggory), que logo percebemos as primeiras diferenças, e a tensão começa a brotar. A presença dele soa como uma crítica aos belgas que, com suas intervenções coloniais, muito contribuíram para a guerra civil em Ruanda.
Fontenaille, que é desenhista, faz um retrato de Veronica, o que deixa Gloriosa, da etnia hutu, enciumada. Sem ser convidada, a jovem vai à casa dele esperando ser desenhada também. Porém, Fontenaille é um grande admirador do povo tutsi, e foi justamente por reconhecer os traços dessa etnia em Veronica que ele quis desenhá-la. Dispensada pelo artista, resta a Gloriosa alimentar ainda mais o seu recalque. Logo ela que é filha de um grande ministro hutu. É importante lembrar que os hutus eram líderes do governo em Ruanda nessa época, e, após o fim da Monarquia Tutsi, os hutus, como maioria no país, conquistaram o poder através do voto. Isso basta para que Gloriosa se sinta superior às colegas tutsis, agindo com esnobismo e preconceito indisfarçado sobre elas. Virginia é a única que bate de frente com ela e é também quem busca solução junto a administração do colégio que, apesar de perceber a crescente tensão, pouco faz para amenizá-la.
Enfim, é através de uma mentira de Gloriosa que somos levados ao desfecho da história, uma pequena demonstração do que seria visto 20 anos mais tarde, em escala nacional. Através de conflitos pessoais desse grupo de adolescentes, entendemos que os “problemas” entre as duas etnias já existiam bem antes dos acontecimentos de 1994, quando ocorreu um dos piores momentos da história da humanidade, o odioso massacre de mais de 800 mil pessoas em Ruanda, em sua maioria da etnia tutsi, pelas mãos de milícias da etnia hutu. Era uma vez uma tragédia anunciada.
Pré-estreia 22.12.2022 | Dir. Atiq Rahimi | Bélgica/França/Ruanda | Drama histórico; 93 min.
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