A reminiscência dos sentidos
Por Lucas Viana
Todo mundo tem uma lembrança de infância para compartilhar em uma reunião de família ou em uma sessão de terapia. Algumas dessas histórias se transformam em livros, como Ainda Estou Aqui, de Marcelo Rubens Paiva, que originou o filme de Walter Salles. Outras inspiram músicas, poesias, evocam lágrimas ou gargalhadas. Às vezes, essas memórias frágeis aparecem como enigmas, instigando nossos sentidos a lembrar do aroma petricor (cheiro de terra molhada), do gosto de comida chamuscada na fogueira ou do sorriso enrugado de uma avó.
Essas lembranças geralmente são detalhes de uma narrativa. Mas será que uma história pode ser contada só com essas reminiscências? A diretora Raven Jackson e a produtora A24 mostraram que sim com o filme-poesia Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal. O longa acompanha Mackenzie, da infância à vida adulta, através de planosdetalhe, focando em minúcias e gestos. Vemos, por exemplo, as mãos de um pai ensinando a filha a pescar, olhares apaixonados de um casal dançando ao som de If I Were Your Woman, de Gladys Knight & the Pips, as mãos ansiosas de uma menina sentindo a textura da areia na caçamba de uma caminhonete, ou uma lágrima escorrendo pelo rosto de uma mulher. Cabe ao espectador interpretar sutilezas, como ao ver uma aliança e se perguntar: “Com quem este personagem é casado?”. Esses pequenos detalhes se agigantam nessa profusão de close-ups, compondo uma tapeçaria sensorial e afetiva de uma jovem criada por mulheres negras no Mississippi.
A direção de arte e fotografia exibem com esmero o cuidado dessas mulheres consigo mesmas e seus filhos. Os cabelos das meninas estão sempre meticulosamente trançados e adornados com fitas de cetim. Seus vestidinhos têm as golas engomadas e delicadas rendas impecáveis. Seja em um velório ou em um casamento, os chapéus são usados com opulência e orgulho. É preciso manter a cabeça erguida e adornada em um ambiente que há pouco tempo era racialmente segregado, mesmo que seja somente para ir à igreja no domingo de manhã.
Em 1964, Nina Simone compôs a canção Mississippi Goddam (Maldito Mississippi) para denunciar o terrorismo de supremacistas brancos, mas Raven Jackson, de outra geração, celebra em seu filme um Mississippi bucólico e afetuoso, com preciosas tradições. Uma das mais peculiares – e que inspira o título do filme – é a geofagia, o ato de comer terra rica em minerais, algo transmitido entre gerações (cada vez menos, nos dias atuais). O costume possui um simbolismo forte de reflexão sobre origens, pós-vida e nossa composição material. É um ritual de conexão com o solo que recebe a água e germina nosso alimento, onde descansam nossos mortos, e que nos dá sustentação para ficarmos de pé. A atriz Eartha Kitt, nascida na Carolina do Sul, certa vez disse: “Eu confio na terra. Não confio em diamantes e ouro”. O gosto de sal da terra e das lágrimas se encontram em uma metáfora poderosa.
Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal nos convida a refletir sobre a complexidade das memórias que moldam nossa identidade. O filme celebra a força das mulheres negras do Mississippi, suas histórias e tradições, mostrando que esses laços são essenciais para entendermos quem somos e de onde viemos. Mesmo em meio a desafios, são essas raízes que nos sustentam e nos conectam. Vale observar, ainda, que a estreia brasileira do filme no Mês da Consciência Negra não poderia ser mais certeira.
Confira o trailer
Todas as Estradas de Terra Têm Gosto de Sal | Estreia 07.11.2024 | Dir. Raven Jackson | EUA | Drama | 92 min.
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