Filhos da Liberdade Por Thaisa Zanardi
Muito além dos estereótipos das saias coloridas e rodadas, dentes de ouro, leitura de mão e outros símbolos mais familiares para nós, o filme Terra de Ciganos, dirigido por Naji Sidki e produzido pela Veríssimo Produções, retrata brilhantemente a riqueza da cultura e sabedoria do povo cigano.
A obra nos leva a um tour pelas diversas paisagens deste país, buscando os poucos remanescentes da comunidade que ainda moram em barracas e que mantêm sua língua e seu modo de vida tradicionais. Com foco na música e através de músicos nativos, o longa faz uma viagem por essa atmosfera enigmática e resiliente.
A produção do filme também conta com a expertise de Kátia Coelho, reconhecida diretora de fotografia do cinema nacional, que aqui contribui para dar o tom e o olhar ideal a esta jornada.
O Brasil é o lar da terceira maior população cigana do mundo, com aproximadamente 800 mil membros, e o filme perpassa por famílias instaladas no interior de São Paulo, Brasília, Goiás, Minas Gerais, Bahia, Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, adotando um estilo road movie, que mostra não apenas as belezas locais, mas, principalmente, as particularidades de cada povo, especialmente os da etnia Calon, grupo que ainda é nômade e reside em acampamentos.
Calon significa “ser livre como o vento”, vento este que sopra de Norte a Sul, Nordeste a Sudeste, e que diz muito sobre a comunidade, que mora em barracas bem abertas e arejadas, mas cuidadosamente decoradas com o visual cigano, cheias de tecidos e cores. Além disso, os Calon são pessoas que saem para trabalhar fora todos os dias, seja nas ruas ou nos afazeres domésticos do acampamento.
O filme teve uma extensa pesquisa, que levou anos para tentar não decifrar, mas retratar com respeito uma parcela da cultura cigana. Aos poucos, visitamos suas origens, que começam lá na Europa, mas aglutinam-se com a cultura brasileira. Nos deparamos também com sua alegria, a força feminina das mulheres ciganas e as especificidades religiosas de cada família.
Apesar de ter um tom leve e extremamente agradável de se assistir, o filme escancara as desigualdades que este povo enfrenta. Em alguns momentos passamos a entender desde uma passagem pelo centro de São Paulo, em frente à catedral da Sé, até um acampamento no Nordeste, onde os ciganos são vistos como cidadãos às margens da sociedade, e o nomadismo deixa de ser um conceito referente apenas a viajantes para ser também sobre a perda do direito de se ter um espaço.
Entre belíssimas paisagens captadas do alto, por drones, e câmeras registrando pés descalços na terra, o filme mostra que muitos ciganos têm condições precarizadas e vivem das trocas de serviços ou objetos, mas, ainda assim, mantém suas tradições, muitas vezes lidas como ostentação, tais como os dentes de ouro, carros, festas, mas a essência do cigano é justamente o oposto, afinal, seu modo de vida é totalmente marcado pelo desapego.
Dentro de sua complexidade étnica, o povo cigano possui hino próprio, bandeira oficial, mas não tem pátria. Sua língua é ágrafa, sem representação escrita; sua história é transmitida oralmente pelos anciãos, e assim sobrevivem ao tempo e aos deslocamentos pelos espaços, com resistência aos preconceitos e preservando suas memórias.
Aqui, entendemos que mesmo diante do desconforto e das adversidades, a liberdade está no estado de espírito e, sem romantismo, o povo brasileiro de raiz cigana sempre encontra um lugar onde hastear sua bandeira e se apresentar.
Confira o trailer
Terra de Ciganos | Estreia 26.09.2024 | Dir. Naji Sidki | Brasil | Documentário | 127 min
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