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Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado

Obra-prima indicada ao Oscar descortina papel do jazz na Guerra Fria


Por Léo Mendes


Amantes de filmes e de música sabem que cinema e jazz sempre andaram juntos. Ou, pelo menos, desde que o cinema passou a ser oficialmente sonoro, com O Cantor de Jazz em 1927. Um thriller noir embalado por blue notes, para dar aquele clima de suspense a uma trama de espionagem, tendo a cumplicidade de uma mulher corajosa, vilões disfarçados de benfeitores, e um assassinato no final, é o que se pode chamar de uma receita clássica. Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado, indicado ao Oscar 2025 de Melhor Documentário, com direção de Johan Grimonprez, reúne todos esses elementos, porém, o jazz aparece aqui de maneira paradoxal e controversa. Outro grande diferencial é que não se trata de um roteiro ficcional, tudo o que vemos na tela realmente aconteceu e o detalhe do assassinato não é nenhum spoiler.   


Este magistral documentário nos leva à conspiração contrária à descolonização do Congo no início da década de 1960, o que gerou um campo de batalha da Guerra Fria entre os EUA e a URSS, destacando o papel da música negra americana durante esse período, usada como “cortina de fumaça”. 


Mas não espere ver um documentário convencional. De forma alguma. Nesta obra-prima, a ousadia estética está muitos patamares acima de tudo o que já foi produzido no gênero, utilizando materiais de arquivo preciosos com a edição impecável de Rik Chaubet, em paralelo com o trabalho genial do designer de som Ranko Pauković. Então, prepare-se para uma experiência multissensorial, com riffs virtuosos, capas de álbuns da Blue Note, canções e vozes sobre imagens que nem sempre correspondem com aquilo que estamos ouvindo. De imediato, isso pode parecer meio perturbador, mas quando descobrimos o segredo por trás dessa aparente desorientação, logo a mensagem audiovisual se torna magnificamente arrebatadora.


E é desta forma que somos levados a acompanhar os diversos lados dessa história. Tudo começa quando os EUA, cujo presidente era Dwight D. Eisenhower, entram em ação enviando Louis Armstrong ao Congo, como um embaixador do jazz para desviar a atenção de um golpe apoiado pela CIA, que culminaria com o assassinato do então primeiro ministro daquele país, Patrice Lumumba, em 17 de janeiro de 1961, pouco depois de sua pátria conseguir a independência da Bélgica. Lumumba, então com 35 anos, ocupou o cargo por apenas 12 semanas, sendo derrubado por uma ação liderada pelo coronel Joseph Mobutu, também congolês. Ao tentar fugir para o leste do país, Lumumba seria capturado, sendo finalmente morto com a cumplicidade do governo dos Estados Unidos e da Bélgica, que viam o líder como alinhado à União Soviética. Tal tragédia gerou uma série de grandes protestos, entre eles a invasão do casal de músicos Abbey Lincoln e Max Roach ao Conselho de Segurança da ONU. Nesse jogo de interesses nefastos, o Congo, um país rico em minas de urânio, permanecendo sob controle europeu, ajudaria no desenvolvimento nuclear dos EUA. 


A obra é brilhantemente ilustrada por falas de testemunhas oculares, documentos oficiais do governo, depoimentos de agentes da CIA, discursos do próprio Lumumba, além de um elenco de primeira grandeza do jazz da época, como Louis Armstrong, Nina Simone, Duke Ellington e Dizzy Gillespie, todos designados para se apresentarem ao redor do mundo como “embaixadores” e símbolos da igualdade, uma ideia totalmente contrária ao histórico de segregação ainda muito vigente na cultura americana. Neste cenário, um dos que mais elucidavam os fatos era Malcolm X, cujos discursos apontavam os abusos velados da política internacionalista. Também merece destaque a visita do premiê soviético Nikita Khrushchev aos Estados Unidos, que se dirige à ONU denunciando o racismo americano e exigindo o fim do colonialismo, o mesmo que, em uma das primeiras cenas, declara o quanto ele não suporta o jazz.  


Outro personagem fascinante em meio a tudo isso é Andrée Blouin, com suas memórias típicas de uma heroína de um romance policial. Ela foi uma mulher nascida na África colonial francesa que se tornou uma conselheira próxima de Lumumba, arriscando a própria vida ao contrabandear documentos através de fronteiras internacionais, atividade que a colocou como alvo de mais de uma tentativa de assassinato.


E o filme, por acaso ou não, tem seu lançamento justamente em 2025, ano do centenário de nascimento de Patrice Lumumba. Vibrante e cheio de ritmo (em todos os sentidos), Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado revisita a história da Guerra Fria para nos fazer refletir sobre o quanto fatos ocorridos há mais de 60 anos ecoam tão vivamente no aspecto geopolítico dos dias atuais. História, cinema e jazz jamais se encontraram em sintonia mais perfeita.  


Confira o trailer





Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado | Estreia 30.01.2025 | Dir. Johan Grimonprez | Bélgica/Holanda/França | Documentário | 150 min.

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