Uma Família Normal
- João Martins
- há 12 horas
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Sujeira escondida sob o tapete
João Martins
Desde que Parasita arrebatou a cena cinematográfica global, consagrando-se como um dos filmes mais influentes da última década, o cinema sul-coreano passou a ser visto sob uma nova ótica — não apenas pela crítica especializada, mas, sobretudo, pelo grande público. A explosão de interesse por produções coreanas, desde o cinema de arte até os populares doramas, revelou um apetite crescente por narrativas que desafiam convenções. Para os apreciadores de histórias densas e emocionalmente impactantes, Uma Família Normal, mais recente longa-metragem do diretor Hur Jin-ho, começa a ganhar espaço nos circuitos internacionais, apresentando-se como uma obra-prima do suspense psicológico e do drama familiar.
O filme, já apontado como um dos mais marcantes do ano, vai muito além do entretenimento superficial: é uma experiência cinematográfica que mergulha nas zonas mais obscuras das relações familiares e dos dilemas morais contemporâneos.
Em Uma Família Normal, Hur Jin-ho — conhecido por sua delicadeza ao explorar as nuances das relações humanas, como em April Snow e The Last Princess — adota uma abordagem mais crua e direta para investigar as tensões dentro do núcleo familiar. A obra, uma adaptação do aclamado romance O Jantar, de Herman Koch, transporta para o contexto sul-coreano uma questão universal: até onde pais estão dispostos a ir para proteger seus filhos e qual o preço dessa proteção. Trata-se de uma reflexão poderosa sobre os limites do amor, os sacrifícios invisíveis da parentalidade e as contradições que tornam a ideia de “normalidade” uma construção frágil e, por vezes, perigosa.
A narrativa se desenrola a partir de um incidente aparentemente trivial — um pai agride o filho de um empresário após uma colisão no trânsito. Esse evento funciona como espelho para a família protagonista, que logo se vê diante do mesmo dilema ético.
Enquanto o homem rico atropela fisicamente seu desafeto, os pais da família central realizam um atropelamento moral — mais sutil, porém igualmente destrutivo — em nome da proteção incondicional aos filhos, ainda que isso implique deturpar a justiça.
No cerne da trama estão dois irmãos de visões opostas: Jae-wan (Sol Kyung-gu), um advogado pragmático, e Jae-gyu (Jang Dong-gun), um pediatra guiado por princípios éticos. O embate entre os dois escancara como até mesmo convicções aparentemente inabaláveis podem se corroer quando os laços familiares são colocados à prova.
As personagens femininas acrescentam camadas relevantes à história. Ji-su (Claudia Kim), esposa de Jae-wan, equilibra racionalidade fria e fragilidade emocional, enquanto Yeon-kyung (Kim Hee-ae) encarna o lado mais sombrio da maternidade — a capacidade de justificar o injustificável em nome do instinto de proteção.
Os verdadeiros catalisadores da narrativa, no entanto, são os filhos, Hyung-cheol e Hye-yoon, frutos de uma criação privilegiada e sem limites claros. Suas atitudes — como matar aula para ir a uma festa — inicialmente soam como simples transgressões juvenis, mas rapidamente evoluem para algo mais perturbador, refletindo a corrosão de valores em um ambiente onde consequências são constantemente evitadas.
Para os entusiastas do cinema sul-coreano, Uma Família Normal representa o que há de mais sofisticado na produção contemporânea do país: roteiros corajosos, direção minuciosa e interpretações intensas que desafiam o espectador a confrontar seus próprios dilemas morais. Já para quem está começando a explorar o cinema asiático, o filme oferece uma excelente porta de entrada, combinando drama psicológico intenso com uma apurada estética visual.
Mais do que manter o espectador de olhos arregalados, Uma Família Normal provoca e inquieta, questionando até que ponto o amor justifica a omissão, a mentira ou até a violência; onde a proteção se transforma em cumplicidade, e se podemos realmente condenar nossos filhos por reproduzirem valores que, de modo consciente ou não, transmitimos a eles. Temos aqui um filme que convida à introspecção: o que, afinal, define uma família "normal"? E, mais importante ainda, qual é o custo de sustentar essa ilusão?
Confira o trailer
Uma Família Normal | Estreia 01.05.2025 | Dir. Hur Jin-ho | Coreia do Sul | Suspense/Drama 116 min.
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